quarta-feira, 13 de março de 2013

Construído no "entre"

Cena da primeira parte do espetáculo, "Safo". Crédito: Bruno Veiga/Divulgação

A questão na qual se fundamenta “Dociamargo” se levanta já no neologismo de seu próprio título: algo que não é doce, nem amargo, é dociamargo, as duas coisas ao mesmo tempo, um adjetivo que parece se contradizer em si, mas que, ainda assim, soa viável. Afinal, por que não?

É nesse “entre”, na mistura que faz surgir algo novo, que se constrói o novo espetáculo da Renato Vieira Cia. de Dança. A peça é concebida em duas partes, a primeira de autoria do de Bruno Cezário e a segunda, do próprio Vieira. Cada uma se debruça sobre o drama amoroso a partir de duas figuras gregas,  respectivamente: a poetisa Safo, que tinha como principal temática o amor às mulheres, e o mito de Afrodite, a deusa do amor.

Em cena, os coreógrafos propõem leituras distintas sobre o tema, mas que inerentemente se cruzam. Detentor de uma concepção cênica bastante amadurecida, Cezário abre o trabalho com uma imagem marcante que dará a tônica do que virá. O amor de Safo, segundo ele, é um mergulho sem medidas em um buraco negro, infinito como a saia aparentemente sem fim da bailarina Soraya Bastos. Há, aqui, certo tom de melancolia e desespero, qualidades desse tal “dociamargo” exaltado, pela primeira vez, em um poema de Safo.

Mas é na peça de Vieira que a questão da mescla presente no neologismo do título fica mais evidente. Embalado pela força das tragédias operísticas, ele reflete justamente sobre esse algo novo, inédito, construído no "entre" de coisas distintas, que assusta e seduz ao mesmo tempo. Através das imagens propostas – uma delas com um bailarino sobre saltos altos – faz-se rapidamente uma associação desse “entre” com a cultura transexual, do indivíduo que não é homem nem mulher, mas trans, e que, tal qual como o amor, transborda gêneros e é impossível de se categorizar.

A beleza de “Dociamargo” está em deixar este senso de novidade e de estranhamento guiar a construção coreográfica. Com isso, a peça confere um significado para o termo que não pode ser posto em palavras, mas apenas dançado. E quando só se é possível dizer algo dessa forma, bem, certamente estamos diante de boa dança. 

Serviço: Renato Vieira Cia. de Dança ( Rio de Janeiro)
Onde: Complexo Cultural Funarte/SP – Sala Renée Gumiel (Alameda Northmann, nº1058, Campos Elíseos, tel.: 11 3662-5177)
Horário: 19 horas
Classificação: 18 anos
Ingressos: R$ 10,00 ( inteira ) e R$ 5,00 ( estudantes e idosos)
Capacidade da sala: 70 lugares

segunda-feira, 4 de março de 2013

Nem tudo que reluz é ouro

Tem muita gente que não gosta de galas. Eu até entendo, sabe? Você vê um bocado de peças soltas, sem conexão aparente umas com as outras, e sempre sob o risco de o resultado final não passar de mero exercício de virtuosismo. Justamente por isso, programar uma boa gala é bem mais difícil do que parece.

Digo isso ainda sob o impacto da Gala Royal Opera House, que abriu a temporada 2013 do Theatro Municipal do Rio neste último fim de semana. Anunciada em conjunto com uma bem-vinda parceria entre as casas britânica e carioca, a apresentação causou inevitável expectativa: oito primeiros-bailarinos do Royal Ballet, incluindo os brasileiríssimos Thiago Soares e Roberta Marquez, dançariam algumas das mais finas peças do repertório desta instituição britânica - tudo intercalado pela participação de três cantores do programa Jette Parker para Jovens Solistas.

A sequência de atrações anunciada também era promissora: alguns grand pas-de-deux pesos-pesados, como "Cisne Negro" e "A Bela Adormecida", estariam mesclados a trabalhos dos atuais expoentes da companhia, como Christopher Wheeldon e Wayne McGregor (ele mesmo, o coreógrafo favorito do Thom Yorke!).
 

Mais amor, por favor, para Thiago Soares, ao lado da amada Marianela Nuñez, do grand pas do"Cisne Negro" 
Pois bem, a coisa começou a degringolar quando foi anunciado, logo ao início, que, "por motivos de saúde" do bailarino Steve McRae, as peças "Im Treibhaus", de Alastair Marriott, e o pas-de-deux do balcão de "Romeu e Julieta" - este com Marquez - não seriam apresentadas. Ok, imprevistos acontecem. Mas, em todas as vezes que já lidei com essa situação, sempre havia um esforço para "remendar" a noite com a substituição das obras perdidas. Dessa vez, tive que chupar o dedo.

É que essa simples configuração mudou tudo. O que era para ser secundário - a parte das árias - ganhou destaque acima do esperado e descompensou a apresentação. O "Cisne Negro" do casal Thiago Soares e Marianela Nuñez sofreu com a falta de sincronia entre o ritmo dos bailarinos e o andamento da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, desta vez sob a regência de Dominic Grier. E quem conhece a obra de Tchaikovski (1840-1893) composta especialmente para balé sabe que vê-la ser dançada fora do tempo, como se deu em alguns momentos aqui, é praticamente um sacrilégio.

Além disso, Soares já esteve bem melhor no palco. Seus movimentos continuam corretos, mas o vigor e a interpretação - seus grandes diferenciais - andam ofuscados por uma espécie de excesso de energia do corpo que o faz gastar força demais para gestos que só fazem sentido em um estado mais desarmado, que exige sutileza.

O duo "Qualia", por Leanne Bejamin e Edward Watson, também pareceu padecer do mesmo mal. Mas... o trabalho de McGregor é excessivamente virtuoso, nele não há momentos de suaves. Além disso, sua questão é mesmo o movimento. Então tudo bem.

Intervalo, rumo ao segundo ato: "a coisa agora vai decolar", penso. Só que não.

Veio Bejamin com "Requiem - Pie Jesu", um solo de Kenneth MacMillan (1929-1992) que não mostra quase nada de um dos coreógrafos que mais soube imprimir sua marca no Royal Ballet. Com "Romeu e Julieta" fora da jogada, restou a Sarah Lamb e Edward Watson dizerem o que realmente representou a obra do cara com uma interpretação do pas-de-deux de "Manon" - comportada, e não arrebatadora, como a música de Massenet implora.

Teve também um come back de Soares & Nuñez com "After the Rain", de Christopher Wheeldon, sob música de Arvo Pärt - e foi aqui, onde só há o piano e o violino como trilha, que a sensação do grand pas do "Cisne Negro" virou certeza. Quem já ouviu "Spiegel im Spiegel" não pode esperar nada menos que sutileza e doçura. E como fazer isso com um corpo tensionado o tempo inteiro? Nesse jogo, Marianela se saiu bem melhor.

Daí chegou a hora da única participação de Roberta Marquez na noite, no grand pas-de-deux de "A Bela Adormecida", também de Tchaikovski, com o tal bailarino que, por motivos de saúde, não dançara outras duas peças (e fez, ainda assim, a melhor variação da noite, vá lá entender como). Ela é uma graça. Seu único pecado foram uns braços ininteligíveis durante as piruetas que acabavam em pescada (essa pose aí de baixo, ó). De resto, ela pareceu ter nascido para ser princesa Aurora para sempre - não à toa, foi dançando este papel, como convidada do Royal, que ela descolou o posto de primeira-bailarina por lá.


Senhor McRae, não me importo de passar mal de vez em quando se isso me fizer conseguir os seus tours en l´air, viu?

E aí.. puft. Agradecimentos do casal. Entram os demais. Agradecimentos de todos... Acabou. Eu, que estava sem o programa, fiquei desconsolada. Onde teria ido parar o conjunto que encerraria a noite? Pelo que tinha lido antes de sair de casa, seria uma peça de Liam Scarlett em cima de música de Strauss II, com a participação de todos, cantores e bailarinos.

Scarlett é a sensação do momento na dança inglesa. Ele abandonou a carreira de bailarino para se dedicar à coreografia, tendo sido apontado no fim do ano passado como artista residente do Royal Ballet. Tudo isso, pasmem, aos 26 anos. Não tinha como não estar curiosa para conferir algum trabalho dele. Mas não. Encerrou aí mesmo com o pas-de-deux, um repeteco da parceria Tchaikovski-Petipa (já vista no "Cisne Negro"), tudo na mesma noite...

Confesso, saí do Municipal do Rio frustrada. Adoro o Royal, mas a gala esteve realmente aquém do que a companhia é. E olha que tive tempo para pensar a respeito de tudo isso, já que o caminho de volta para casa levou umas boas seis horas de estrada. Ainda torço muito para que a turnê de 2015 aconteça. Mas aí, sim, com toda a estrutura disponível e necessária - e com todos de prontidão para os devidos ajustes no programa, quando necessário.

Tão bonitinho por fora, mas por dentro...

Que pena que a reforma do Municipal não restaurou o repeito do público... 
Aviso: o desabafo que você está prestes a ler oscila numa tênue linha entre a ode ao respeito e a chatice de galocha.

A partir de hoje, vou pensar cinco vezes antes de sair de São Paulo para ver algo no Theatro Municipal do Rio. Porque é simplesmente inadmissível querer assistir a um espetáculo de quem você valoriza e honra ao lado de quem não se importa de forma alguma com quem está ao lado e, muito menos, com o artista que está à frente.

No último sábado, durante a Gala Royal Opera House, fiquei ensanduichada entre espécimes que exemplificam bem isso. Do lado esquerdo, uma dupla de senhoras de cabeça branca, aparentemente na casa dos 80 anos, não parava de falar durante as aberturas de atos, com peças de Wagner e Verdi. Do lado direito, um senhor permaneceu o espetáculo inteiro com a luz do celular ligada para acompanhar a "evolução" do espetáculo lendo o programa. No intervalo, percebi que a esposa deste acompanhava a transmissão da novela das 21h, por um tablet, com closed caption.

Ainda neste intervalo, enquanto passeava no hall, um jovem senhor com sotaque estrangeiro perguntou a um dos lanterninhas se não seria possível dar um puxão de orelha no público, pelo sistema de locução, censurando o falatório geral. O funcionário nem cogitou a hipótese. Na volta para o segundo ato, reafirmaram apenas o de sempre: sem fotos, sem bebidas, sem comida (e, obviamente, ainda tivemos que lidar com flashes e ver gente com garrafinha de água na plateia).

Ah! Tem ainda o fato de que, tanto antes do início do espetáculo quanto neste mesmo intervalo, fui comprar o programa e descobri que ele estava esgotado. "Agora só amanhã", disse-me o segurança.

Ano passado, vendo a montagem de "Coppelia" nesta mesma casa, numa montagem do Balé do Theatro Municipal do Rio, fiquei paralisada. Diante do ti-ti-ti atrás de mim, quando os bailarinos já estavam até mesmo em cena, me virei, olhei para a garota que estava falando e fiz aquele sinal de silêncio das enfermeiras, sabe? Com o dedinho na frente dos lábios. A menina se calou imediatamente e eu retornei para ver o espetáculo achando que estaria, enfim, em paz. Daí alguém me dá um tapinha no ombro, me viro e a mãe dela brada em alto e bom som: "Não fale assim com a minha filha, não!!!"

Que reação é possível diante de uma inversão de valores como essa?

Arte é imersão. Adoro a potencialidade encerrada nas três paredes da caixa cênica e todas as trocas que permeiam a fronteira entre o palco e a plateia. Gosto de ver como um artista "funciona" diferentemente com plateia vazia e cheia, e quão maravilhoso é ver-se parte de uma obra, sair dela tocado de alguma forma, com a cabeça fervilhando de ideias, com uma poesia visual dentro de si.

Isso já não é fácil com as condições ideais de temperatura e pressão, quando a maior parte desse peso fica mesmo no ombro dos artistas e em nossos olhares de juiz. Imagine quando NADA no ambiente ao redor favorece, nem a belíssima arquitetura que envolve a cena, nem a equipe da casa que não se estrutura para imprimir um mínimo de programas capaz de atender aos espectadores.

Depois dessa noite, amanheci em São Paulo e resolvi assistir a um concerto matinal da Orquestra Sinfônica Municipal. Sala um tanto esvaziada, um programa com peças de Respighi e Rimsky-Korsakov e um jovem maestro italiano convidado sobre o qual nunca tinha ouvido falar até então.

Houve falhas? No meu ouvido de leiga, um pouquinho, sim. Um desafino no violino aqui, um oboé brevemente mais abafado do que o usual acolá. Mas o resultado conseguiu me emocionar de um jeito que a plateia lotada do sábado não me deixou nem tentar alcançar. E o melhor mesmo foi sentir, na hora dos aplausos, que a minha sensação parecia ser a mesma daqueles que aceitaram dividir, durante hora e meia, aquele espaço ao meu lado. Com respeito e admiração (sim, é simples assim).