sexta-feira, 9 de maio de 2014

Festival O Boticário na Dança: Dia a dia

Companhia de Akram Kahn em "iTMOi" |
Crédito: John Ross/Divulgação
Akram Khan
29/4 - Auditório Ibirapuera
"iTMOi" (2013)
Com seu “iTMOi” (sigla em inglês para “Na mente de Igor”), o inglês Akram Khan criou um trabalho estranhamente mais narrativo do que se esperaria de qualquer produção contemporânea. A escolha do título – uma referência ao que teria se passado na cabeça do compositor Igor Stravinski (1882-1971) ao compor “A Sagração da Primavera” – e a opção por designar personagens em cena, pinçados de seu elenco multicultural (e de fazer a baba escorrer pela boca de tão bom), reforçam a criação de uma historinha por parte do público, por mais que ela não seja linear. A estratégia parece ter funcionado, já que o comentário geral o apontou como o espetáculo que mais agradou dos cinco dias do Festival. Mas, justamente por incitar possíveis histórias, Khan acaba deixando lacunas ao abandoná-las pelo meio do caminho.

Os dilemas da criação de uma obra tão vocacionada a romper paradigmas quanto a “Sagração” são deixados de lado em prol de uma releitura do tema do ritual e do sacrifício motivador da trilha original. Ou seja, por mais que não faça uso da música do compositor russo (que aparece apenas como citação no final da peça), Khan acaba repetindo os mesmos passos de todos os coreógrafos que já criaram suas próprias versões da “Sagração”. O que ele tem a mostrar de diferente é sua técnica, que dá uma nova roupagem de sentidos ao kathak indiano ao abordá-lo por um viés contemporâneo, e um claro domínio cenográfico que seduz e até dá a sensação de que há uma dramaturgia bem costurada por trás quando, na verdade, não há. À parte a história do sacrifício, o melhor está no final, quando o palco é tomado apenas por um casal com malhas cor da pele perturbado por uma bola de metal que ronda sobre eles. Ali estão Adão e Eva, a criação à imagem e semelhança do criador, cujo pecado capital foi, no fundo, cometer uma grande ousadia. É uma imagem forte, que provoca enfim um lampejo de uma possível tradução do que teria se passado na mente do compositor.


Louise Lecavalier (Canadá)
Bailarina apresenta vigor em "So Blue" |
Crédito: André Cornellieur/Divulgação
30/4 - Auditório Ibirapuera
"So Blue" (2012)
A peça de autoria da ex-La La La Human Steps Louise Lecavalier é um trabalho de fôlego. Quase não há pausas nos 60 minutos do primeiro trabalho autoral da bailarina canadense. No palco, seus 55 anos se passam facilmente por 25 tamanho o vigor que ela apresenta. É uma obra sobre a busca do movimento total e a paixão inexplicável de dispor integralmente do corpo para tal feito, quase como uma vocação religiosa. O resultado pode até ser frouxo do ponto de vista dramatúrgico, mas é compensado justamente pela maturidade cênica de Lecavalier, que cresce ainda mais quando ela passa do solo ao duo com o bailarino Frédéric Tavernini. Há aí um interessante diálogo de contraste, já que ela subverte sua figura pequena e aparentemente frágil e apresenta uma força maior que a do grandalhão barbudo com quem divide a cena. “So Blue” é o início promissor de uma trajetória como coreógrafa que vamos querer acompanhar de perto.


Cena de "4", criação de Tao Ye | Crédito: Fan Xi/Divulgação
Tao Dance Theater (China)
1o/5 - Auditório Ibirapuera
"4" (?) e "5" (2013)
Maior incógnita do festival, a novíssima companhia chinesa Tao Dance Theater, criada em 2008 por Tao Ye, fez uma apresentação digna com suas duas coreografias, “4” e “5”, e se revelou como a maior novidade do evento. O mote da primeira era “como criar uma coreografia em que nenhum dos bailarinos se toca?”. Ora, os mestres dos corpos de baile dos balés de repertório já haviam respondido essa pergunta séculos atrás. O que há de interessante no trabalho – e que dialoga com a segunda peça da noite – é uma discussão sobre individualidade. Em “4”, nenhum dos quatro bailarinos tem rosto. Todos estão mascarados, dançam os mesmos passos e se deslocam pelo espaço na formação de um quadrado, minutos a fio, sob uma luz chapada, dando a sensação de um espelho infinito. A força desse movimento uníssono se esvai em alguns momentos dada a falta de sincronia entre eles. Lá pelas tantas, no entanto, percebe-se que os movimentos supostamente idênticos entre eles não eram tão idênticos assim. Pequenas alterações de cada um dentro daquele moto-contínuo são a declaração de que ali há um indivíduo, e não apenas uma massa.

Já em “5”, Tao exige um outro tempo do nosso olhar acelerado pelo mundo cotidiano e provoca uma hipnose no público ao colocar todos os cinco bailarinos em cena para se transformarem em uma massa única, deslocando-se pelo palco em movimentos extremamente lentos e arrastados pelo chão. Há um quê de monstruoso nesse ser com um só tronco, mas repleto de pernas e braços, que se movimenta sem rumo e se refaz continuamente . A problemática da peça anterior se apresenta sob uma nova perspectiva. Se antes se discutia a impossibilidade de um conjunto de individualidades ser completamente uniforme, agora se evidenciam as deformidades resultantes de uma uniformização.


Bailarinos da Focus em "Ímpar" | Crédito: Divulgação
Focus Cia. de Dança
2/5 - Auditório Ibirapuera
"Ímpar" (2010)
Única representante brasileira em um festival focado em exaltar a dança feita lá fora, “Ímpar” mostrou o elenco da carioca Focus Cia. de Dança em sua melhor forma. É estranho ver esse trabalho de 2010 apenas agora, depois do grupo ter criado um sucesso de massa com “As Canções que Você Dançou para Mim” (2012). “Ímpar” é um trabalho formalista. Sua pretensão está em si mesmo, na criação e no apuro da qualidade do movimento. Alex Neoral demonstra seu potencial coreográfico no trabalho e se vale de uma boa sacada dramatúrgica ao brincar com flashfowards e flashbacks e fazer o público se pegar tentando montar na cabeça o que seria uma ordem cronológica do espetáculo. Assim, ele subverte noções como as de começo, meio e fim, propondo um desenrolar narrativo que evidencia a importância de todas as cenas apresentadas para a construção da obra. O que está em questão é uma discussão sobre o tempo: no fundo, nunca há uma ordem "certa" para os acontecimentos, e é salutar que "Ímpar" consiga levantar o tema de forma simples e eficiente.


Batsheva Ensemble tem bailarinos com idades
entre 18 e 27 anos | Crédito: Gadi Dagon/Divulgação
Batsheva Ensemble
3/5 - Auditório Ibirapuera
"Decadance" (2000)
Após uma semana equilibrada, o festival escolheu encerrar justamente com o trabalho mais fraco. “Decadance” é um pout-pourri do que o coreógrafo israelense Ohad Naharin considera como seus melhores momentos. O tipo de trabalho desenvolvido por ele, com sua vigorosa e contagiante linguagem Gaga, não é exatamente uma novidade por aqui. Seu grupo, o Batsheva Dance Company, já fez turnês na capital paulista e até mesmo o Balé da Cidade já dançou suas criações. Uma peça que funciona como demonstração, e não como um trabalho em si mesmo, pouco acrescenta à formação de um público de dança. Isso piora quando o “Decadance” apresentado em São Paulo é encenado pelo Batsheva Ensemble, o braço jovem da companhia, com bailarinos entre 18 e 27 anos. A falta de unidade no trabalho deixa ainda mais evidente a pouca maturidade do elenco para sustentar os segmentos apresentados. O final escolhido, retirado do potente início da peça “Minus 16” (1999), deixa isso bem claro. A peça foi dançada na íntegra na cidade no ano passado, pela Alvin Ailey Dance Theater. Quando uma companhia de fora consegue dar mais densidade a um trabalho do que a companhia de seu criador, parece haver um problema.

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